segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Espelho dos pais

 Mamãe, no café da manhã, fez um rolinho de presunto e mussarela para Alice. Então cortou um pedaço, com a faca que estava disponível na mesa: a mesma do requeijão. Junto ao pedaço do rolinho ficou um pouco de requeijão, que estava na faca. NÃÃÃOOO, mamãe! Imediatamente esbravejou a Alice, apontando para o requeijão lambuzado.
 Fiquei impressionado com o fato! Pude me ver ali, no lugar da Alice, exatamente como ela. Foi como se ela estivesse vivendo e sentindo o mesmo que eu já vivi e senti.
 Não sei se é genético ou se com apenas dois anos de idade ela já observou e absorveu esse meu comportamento exigente e minucioso, mas pouco importa a origem, o fato continua espantoso. Afinal, a Alice gosta de requeijão, mas tem de ser do jeito certo.
 É conselho antigo e já conhecido: escolher bem a pessoa com quem se vai ter filhos, pois estes ficarão idênticos aos seus pais, no que tem de bom e de ruim. Saber isso é uma coisa, mas ver isso acontecendo de uma maneira tão direta e rápida é assombroso.

domingo, 23 de dezembro de 2012

Ser e viver o seu tempo

 Eu tive a sorte de conhecer uma das minhas bisavós e ainda tenho em mente recordações dela. Lembro das balas Soft no enfeite de vidro grosso sobre a mesa da sala (acompanhado dos gritos para não quebrar o vidro e do alerta para não engasgar com a bala, aliás, só ganhei a bala Soft após jurar ter idade suficiente para chupá-la sem tentar engolir). Lembro do livreto de capa dura verde-oliva em que havia a árvore genealógica dela, um intrincado de relações pessoais, que ao meu entender infantil se limitava a ficar impressionado com a lista dos nomes de seus vinte e três irmãos! Minha avó, filha dela, até hoje vangloria a riqueza da família e não nos deixa esquecer que cada um desses irmãos herdou uma fazenda inteira. Lembro também de muitas outras coisas interessantes, como o formato de seu sofá, o cheiro da sua casa, a geladeira com maçaneta, o gosto diferente da salsicha (era perdigão, enquanto que na minha casa era da sadia). 
  São diversas recordações, mas o que me fez lembrar de minha bisavó agora é sua insuperável habilidade para operações matemáticas. Incentivados pelos tios, ficávamos com calculadoras na mão e perguntávamos, quanto é 35 x 15? 42 x 18? Ela sabia! Respondia de cabeça, rapidamente. Era a única que sabia, ninguém mais arriscava a responder sem a calculadora nas mãos ou um pedaço de papel e caneta. É um fato. Hoje fico em dúvida se ela usava uma técnica para  decompor os números mentalmente ou se decorou a tabuada até o 100. Sei que de mim, na escola e na vida, só me exigiam decor a tabuada até o 10.
  Lembrei disso quando vi o terceiro brinquedo da Alice que estimula a criança a aprender o abecedário, aliás, eles tem a mesma música chatinha, que termina assim "Eu já sei o ABC, agora falta só você". Então pensei que a ordem alfabética está fadada a se tornar um conhecimento de historiadores e bisavós. Certamente alguém, um dia, irá confundir a ordem alfabética com um driver que o computador usa para ordenar os dados.
  Claro, ainda será preciso aprender as letras, sua grafia e sua fonética, mas a ordem alfabética, assim como a caligrafia, serão habilidades secundárias. Não me considero um vanguardista, mas não me preocupo nem um pouco se Alice vai ter uma letra bonita. Fico pensando apenas nos vestibulares (se esses perdurarem) ou nos concursos públicos, será que quando chegar a vez dela, ainda serão manuscritos? É tão incerto, que continuo a não me preocupar nada com a caligrafia dela. Aliás, se eu perceber que Alice está se esmerando em fazer uma letra bela, vou entender isso como uma feliz propensão para o desenho artístico, quem sabe ela não será arquiteta?  
 Nesse confronto entre tradição e modernidade eu não tomo partido, aliás, sequer sinto o confronto. Com a mesma naturalidade, ofereço à Alice valores católicos que me formaram e a incentivo a navegar o mundo caótico pelo iPad. Penso que é da mistura que poderá crescer uma boa pessoa, tenha saudades da bisavó ou não.

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Entre nós

 Alice está deixando de ser bebê. Vem adquirindo habilidades fabulosas. Ontem mesmo, finalmente, aprendeu a assoprar o apito. Tenho aqui uma caixa de apitos de madeira de diversos tamanhos e formas para reproduzir o som de pássaros da amazônia brasileira.
 Até ontem, Alice punha o apito na boca e só o deixava babado. Às vezes, dava um gritinho, tentando fazer com a garganta o som que deveria sair do apito. Era engraçadinho. Passou dias assim, nós tentando mostrar como é que se assopra e fazendo altos sons, ela não conseguia fazer nada e tinha de aguentar nossas risadas. Deve ser muito estressante ser um bebê de um ano, mas Alice é firme, compenetrada e não desiste fácil.
  Pela alegria que ela demonstrou, imagino o quanto ela desejava apitar igual a nós. Abriu um sorriso imenso, seu rosto iluminado, um portal para a felicidade. Impossível não se contagiar. Não queria mais parar, ainda que, a cada novo apito, ela ficasse apreensiva, quieta, imóvel, como se fizesse um suspense para nós, então assoprava, o som ecoava e todos sorríamos deliciosamente, em família.
 Alice está cada vez mais do lado de cá, no nosso mundo. Mas ainda a flagro lançando seu olhar para o nada, de repente, grita, como quem chama, depois aguarda, atenta, grita de novo, como quem se despede. Espero, filha, que nunca se esqueça do lado de lá, que sempre há um lado de lá, que não é necessariamente o lado que nos opõe, nem quer o nosso mal. São apenas dimensões, sutilmente interconectadas, por estrelas, como você, habitante do cosmos, que nos traz luz, calor e alegria.